Descriminalização do Aborto e a (In)Competência do Supremo Tribunal Federal

Lucas Nardi Vieira – 01.10.2023

Recentemente, a ADPF (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental) 442, que trata acerca da Discriminalização do Aborto, recebeu voto da Ministra Rosa Weber.
O processo originário, que levou feito a pauta de julgamento do Supremo Tribunal Federal, em síntese, a uma mulher que, com aproximadamente 6 meses de gestação, ingeriu via oral o medicamento Citotec, além de ter inserido na vagina dois comprimidos do mesmo medicamento, a fim de provocar um aborto.
A referida mulher engravidou de um homem em um bailão após ingerir álcool em excesso e sequer se recorda o nome dele, conforme declarou a autoridade policial.
No dia seguinte após a ingestão e inserção do medicamento Citotec, a mulher compareceu no hospital da cidade após sentir fortes dores abdominais, vindo a abortar o feto de 6 meses.
A mulher foi condenada em primeira e segunda instância e pronunciada como culpada por infringir o artigo 124 do Código Penal, que prescreve:
Art. 124 – Provocar aborto em si mesma ou consentir que outrem lho provoque: (Vide ADPF 54)
Pena – detenção, de um a três anos.

Com a condenação da referida mulher, o PARTIDO SOCIALISMO E LIBERDADE – PSOL utilizou o caso como paradigma para ajuizar uma Ação de Arguição de Descumprimento de Preceito fundamental, para que fosse decretada a não recepção parcial dos artigos 124 e 126 do Código Penal.
Art. 124 – Provocar aborto em si mesma ou consentir que outrem lho provoque: (Vide ADPF 54)
Pena – detenção, de um a três anos.
Art. 126 – Provocar aborto com o consentimento da gestante: (Vide ADPF 54)
Pena – reclusão, de um a quatro anos.

Os fundamentos utilizados pelo PSOL para postular a decretação da não recepção parcial dos artigos 124 e 126 do Código Penal em síntese são:

  • a violação a preceitos fundamentais da dignidade da pessoa humana, da cidadania, da não discriminação, da inviolabilidade da vida, da liberdade, da igualdade, da proibição de tortura ou tratamento desumano ou degradante, da saúde e do planejamento familiar de mulheres, adolescentes e meninas;
  • a solução da questão do aborto deve ser jurídica, e as evidências científicas relevantes à pacificação constitucional da controvérsia
  • qual a razoabilidade constitucional do poder coercitivo do Estado para coibir o aborto?
  • A longa permanência da criminalização do aborto é um caso de uso do poder coercitivo do Estado para impedir o pluralismo razoável
  • uma mulher a cada minuto faz aborto no Brasil
  • o aborto é um evento mais comum na vida de mulheres que vivenciam maior vulnerabilidade social
  • O falido sistema prisional brasileiro seria quadruplicado, e as mulheres seriam a principal população carcerária
  • a taxa de prisão por aborto seja desprezível quando comparada ao universo de mulheres que realizaram aborto, não se pode argumentar ausência de efeitos nocivos da lei penal
    Com relação a afrontas a preceitos fundamentais, tal tese é completamente descabida porque tratam-se de conceitos amplos, sem definição exata, que servem para justificar tanto uma tese (da discriminalização do aborto), quanto outra (da criminalização do aborto)
    Como visto, os fundamentos suscitados pelo PSOL são fundamentalmente políticos. Ora, como um partido político, a força de sua tese não deveria ser demonstrada no Congresso?
    A vulnerabilidade social existe no contexto brasileiro exclusivamente em virtude de políticas públicas, dos próprios partidos, mal estruturadas e executadas. Nesse contexto surge inclusive a superpopulação carcerária. É por meio da falta de estrutura prisional que existe a superpopulação e tais políticas são exclusivamente de Governos.
    A normalização do evento aborto, por si só, não pode ser causa para a discriminalização, se assim fosse, os assaltos também deveriam o ser, haja vista que existem em média 3,35 roubos por minuto no Brasil.
    Além disso, porque 11 Ministros tem o poder de decidir os rumos de uma sociedade em um tema tão sensível?
    Atualmente, o Congresso Nacional é composto de 513 Deputados Federais e 81 Senadores. Essa composição vultuosa tem o único escopo de garantir a diversificação de ideias, além de promover o debate público, quando da promulgação das leis.
    O que se depreende deste julgamento é o único caráter legislador do Poder Judiciário, que vêm assumindo, pouco a pouco, as funções típicas do Poder Legislativo.
    Inclusive, os fundamentos que amparam toda a tese acerca da discriminalização do aborto dizem respeito tão somente a uma tentativa dos partidos políticos em lavar as mãos, eximindo-se da responsabilidade por este país desestruturado, mergulhado em corrupção, que criaram e o Poder Judiciário, de forma totalitária e discricionária, vêm assumindo funções sociais e de Governo.
    O resultado dessa assunção de funções por parte do Judiciário é a insegurança jurídica que vivemos hoje!
    Cada vez que mudam os Ministros do STF (por vezes nem é preciso que haja mudança), decisões e entendimentos, antes pacificados, são alterados.
    Quando se prepara um contrato, uma tese de Direito ou uma defesa em processo, a advocacia ampara-se na realidade atual do ordenamento jurídico, mas quando inexiste segurança jurídica, a sociedade como um todo é prejudicada, porque deixa-se de conhecer o que é certo e errado.
    Somente o Poder Legislativo pode Legislar. Os artigos 124 e 126 do Código Penal são de fácil compreensão. É extremamente perigoso para nossa democracia que 11 Ministros conduzam os rumos de temas tão sensíveis.

Análise técnica do julgado:
Os fundamentos utilizados pelo PSOL dizem respeito fundamentalmente a teses políticas, especialmente em virtude das condições precárias que o Estado dispõe à população.
É com base no artigo 102, §1º, da Constituição Federal, que o PSOL alegou ser competência do Supremo Tribunal Federal para o julgamento de Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental.
Segundo tese do referido partido, é o art. 1º da Lei 9.882 de 1999 que define o objeto da ADPF: “evitar ou reparar lesão a preceito fundamental, resultante de ato do Poder Público” (caput), cabível ainda “quando for relevante o fundamento da controvérsia constitucional sobre lei ou ato normativo federal, estadual ou municipal, incluídos os anteriores à Constituição”
Para o cabimento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental, são necessários dois requisitos: Evitar ou reparar lesão a preceito fundamental e que a lesão tenha sido causada por ato do Poder Público
O ato do Poder Público em questão são os artigos 124 e 126 do Código Penal.
Os preceito fundamentais supostmente violados são: o da dignidade da pessoa humana (CF, art. 1º, inciso III), da cidadania (CF, art. 1º, inciso II) e da promoção do bem de todas as pessoas, sem qualquer forma de discriminação (CF, art. 3o , inciso IV), direito à saúde (CF, art. 6º), à integridade física e psicológica das mulheres e à proibição de submissão a tortura ou a tratamento desumano ou degradante (CF, art. 5º, III), igualdade de gênero, decorrente do direito fundamental à igualdade (CF, art. 5º, caput) e do objetivo fundamental da República de não discriminação baseada em sexo (CF, art. 3º, inciso IV)

Todos esses mesmos princípios são suprimidos a partir de Políticas Publicas de qualidade e não transferindo a responsabilidade para as pessoas.

Dignidade da pessoa humana e promoção do bem de todas as pessoas são princípios que dizem respeito obrigatoriedade em o Estado promover condições de vida digna, com a promoção da saúde, educação, lazer, moradia…. Terá mais qualidade de vida aquela mãe que aborta?
Com relação a suposta violação integridade física e psicológica das mulheres a partir da proibição a submissão a tortura ou tratamento desumano ou degradante, além de tratar-se de novo conceito amplo, diz respeito a submissão a tortura propriamente dita. É uma tortura psicológica carregar um filho? (obviamente que em alguns casos, como quando em um estupro, sim, pode ser).
Um aborto obviamente não gerará igualdade entre homem e mulher, sendo refutado o fundamento da discriminalização do aborto deva ser amparado na igualdade de gênero.

Note-se que todo o embasamento teórico para o conhecimento do ADPF decorre de conceitos genéricos, cujo conteúdo pode ser acrescidos, suprimidos ou distorcidos conforme convém àquele que os faz uso.
O Brasil precisa urgentemente de uma reforma na legislação penal, porém essa reforma não pode advir do Poder Judiciário, especialmente em virtude da incosistência e insegurança de suas decisões.

Esse debate deve prosseguir, mas não no âmbito do Poder Judiciário, com 11 Ministros, cada qual com suas crenças e vivências, legislar um tema tão sensível. Seja por conceitos técnicos, seja por conceitos históricos e democráticos, o Supremo Tribunal Federal é um mero leitor e aplicador da lei e os artigos 124 e 126 do Código Penal são de fácil compreensão.
Até que haja uma nova legislação, a leitura aos referidos artigos deve ser de forma estrita, o que certamente impulsionará o debate da forma correta, onde seja, no Congresso Nacional, especialmente porque o direito a vida, embasamento daquilo que se busca a tutela, diz respeito ao Direito a vida do feto e, especialmente, quando se inicia a vida.
Havendo relativização sem lei prévia, existirá um precedente perigoso para que outros crimes sejam discriminalizados pelo Poder Judiciário.

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